julho 07, 2006
8 Historias de "bola"
ANGOLA
Golo Decisivo: Curar um País
Texto de Henning Mankell
Na primeira vez que visitei Angola, nem me apercebi de que entrara no país. Estávamos em 1987 e eu vivia no Noroeste da Zâmbia, perto da fronteira angolana. Estreitas estradas de areia serpenteavam pelo mato sem fim. Era fácil uma pessoa perder-se enquanto conduzia e, quando viajava até uma aldeia distante, desorientava-me com frequência. Quando parava para pedir ajuda, se a pessoa me respondia em português, eu precisava urgentemente de voltar para trás, atravessando rapidamente para o lado sossegado da fronteira invisível. Profundamente ferida por um longo período colonial, Angola viu-se sufocada, depois da independência, por uma violenta guerra civil. Os guerreiros do líder rebelde Jonas Savimbi, tristemente célebres pelos actos de violência indiscriminada que cometiam, andavam por todo o lado. Uma geração inteira de angolanos nunca soube o que era viver num país onde reinasse a paz.
Contudo, havia algo mágico naquela terra do outro lado da fronteira invisível: o futebol estava presente em toda a parte. Em campos de cascalho e em praias arenosas, sobre os passeios e nas praças das cidades, viam-se hordas de jovens a jogar à bola. Bolas feitas com os materiais mais inimagináveis – uma t-shirt velha, uma rede de pesca ou uma carteira de mulher, recheadas de papel e capim. Apesar disso, as bolas não deixavam de rolar e de saltar, servindo na mesma para cabecear e para marcar golos. A guerra nunca foi capaz de matar o futebol em Angola. Os campos de futebol foram declarados zonas desmilitarizadas e os encontros entre equipas serviam como defesa contra os horrores que grassavam por todo o lado. Depois de se defrontarem num jogo de futebol, as pessoas têm maior dificuldade em matar-se umas às outras.
Angola tem assistido ao êxodo de muitos dos seus futebolistas, que saem do país para ganhar a vida noutros países, sobretudo em Portugal, embora muitos não renunciem à nacionalidadee angolana. E quando os convocam para envergar os calções negros e as camisolas e meias vermelhas (as cores da selecção nacional) nem hesitam. Chamam-lhes carinhosamente “Palancas Negras”.
No dia 8 de Outubro de 2005, Angola entra em campo no Estádio de Amahoro, em Kigali. Nesse momento, vive-se uma situação espantosa: se Angola vencer o Ruanda por um só golo que seja, qualificar-se-á para a fase final do Campeonato do Mundo, à frente da Nigéria, independentemente do resultado do jogo entre a Nigéria e o Zimbabué. É uma espera de pesadelo para todos os angolanos, que aguardam, sentados, de orelhas pregadas nos rádios. Luanda imobiliza-se. Em Huambo, Lubango, Namibe, Lobito, Benguela, Malanje, em todas as cidades e aldeias, toda a gente se reúne à volta de um rádio. É bem possível que, no meio da savana, as próprias palancas estejam de ouvidos atentos.
No final da primeira parte, mantém-se o empate a zero. Entretanto, a Nigéria caminha para a vitória contra o Zimbabué. Em Kigali, porém, o jogo prossegue sem golos. Parece que tudo vai terminar mal para Angola. Imagina-se o que os jogadores e treinadores terão dito uns aos outros durante o intervalo. O nervosismo instala-se entre os jogadores. O Ruanda, para quem só a honra está em jogo, quase marca golo em várias oportunidades. Toda a gente concorda que Angola está a praticar um péssimo futebol. É uma equipa à beira do esgotamento. Os jogadores falham passes e desentendem-se. Faltam dez minutos para o fim. No seu desespero, os angolanos quase perderam a consciência. De súbito, o suplente Zé Kalanga, entrado há minutos, faz um centro tenso, tão surpreendente como brilhante. Fabrice “Akwa” Maieco está no lugar certo e, com a cabeça, marca na perfeição o único golo da partida, depois de a bola ressaltar no chão e ultrapassar o guardião ruandês, anichando-se nas malhas da baliza.
Seria preciso uma pessoa viver muitos anos em África para compreender o significado desta vitória. Como é evidente, neste momento ninguém acredita que Angola vá muito longe no torneio. Mas o futebol é, por natureza, imprevisível. Se periodicamente os vencidos antecipadamente não derrotassem os vencedores previsíveis, o futebol perderia interesse.
No entanto, já se conquistou uma grande vitória, mesmo que ela não tenha dado acesso a qualquer taça resplandecente. Acima de tudo, este triunfo está nos corações e nos espíritos de todos os angolanos. A qualificação para a fase final do Campeonato do Mundo de futebol representa muito para a autoconfiança de um país devastado pela guerra e pelas privações. Um país que, depois de ser castigado durante tanto tempo, irá de novo ser construído.
(Henning Mankell é autor de cerca de 40 romances, entre os quais os romances policiais protagonizados pelo inspector Kurt Wallander. Divide o seu tempo entre a Suécia e Moçambique, país onde dirige o Teatro Avenida.)
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4 comentários:
Olá.
É de realçar a emoção com que fazes a descrição desse país que é Angola :) tens muitas lembranças de lá e é natural q nao te passe indiferente.
Tb penso que o acesso ao Mundial fui muito importante para eles, porque tal como em todos os países, eles souberam o q era estar unidos por uma modalidade como o futebol, vibrarem juntos e sentirem todos a mesma emoção ;)
Posh Boy
posh_moments.blogs.sapo.pt
Caro Posh Boy,
Lamento mas as memórias não são minhas.... De qualquer for,a obrigado pelo comment.
Um belo relato. Só poderia ter sido escrito por alguém que sabe manejar a pena.
Sem duvida, sem duvida.
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